Em 2018, o Piauí ostentava o título do estado com a pior internet do Brasil. Para sair dessa incômoda posição, no mesmo ano, o governo local declarou a Globaltask como a vencedora de uma parceria público-privada (PPP) para construir uma rede de fibra ótica conectando, inicialmente, 101 cidades.
Três anos depois, o contrato foi estendido a todos os 224 municípios do estado. O aditivo ampliou o investimento total previsto nos 30 anos da PPP, batizada de Piauí Conectado, de R$ 214 milhões para R$ 396 milhões.
O Piauí, até então o lanterninha quando o assunto era conexão digital, passou a ser exemplo e a liderar o ranking dos melhores serviços do País nesse quesito. Entretanto, houve uma grande desconexão nessa relação, até então, positiva.
Há um ano, o governo do Piauí e a Globaltask travam uma disputa judicial que, muito além das fronteiras do estado, configura mais um exemplo de como a insegurança jurídica atrapalha o desenvolvimento do País.
Unilateralmente, o governo decidiu que pagaria somente 35% do valor do contrato, quer retomar a concessão e a empresa, que já aportou cerca de R$ 250 milhões na iniciativa, corre para fazer valer o contrato assinado.
“Desde então, o governo montou uma verdadeira operação de guerra contra o projeto”, diz Edson Ribeiro, presidente da Globaltask, ao NeoFeed. “Salta os olhos a arbitrariedade e a truculência nesse processo. Estamos de mãos atadas e eu fico temeroso, pois tenho projetos em diversos estados”.
Fundada em 2003 no Mato Grosso, a Globaltask atua com a construção e a implantação de redes de dados. A empresa tem projetos em sua terra natal e em estados como Tocantins e São Paulo. E o Piauí Conectado foi sua primeira incursão no modelo de PPP.
A mudança nas regras do jogo desse projeto teve como marco a troca de governadores do estado. Em janeiro de 2023, Rafael Fonteles (PT), sucessor de Wellington Dias (PT), manifestou a intenção de rescindir o contrato. Já em março, ele reduziu em 65% o valor do pagamento mensal à concessionária.
Essas medidas desencadearam o imbróglio legal, com ações de ambas as partes. E que teve seu capítulo mais recente no início de dezembro de 2023, quando o governo decretou a intervenção na concessão, sob alegação de que a Globaltask não vinha repassando informações claras e seguras sobre o projeto.
“A incerteza sobre a existência, o estado de conservação e a funcionalidade dos bens reversíveis compromete o controle, a regulação e outras funções administrativas indelegáveis e indisponíveis que o poder concedente tem o dever de realizar com o intuito de assegurar a adequada prestação de serviços atualmente e no futuro”, ressalta um trecho do decreto.
O documento assinado por Fonteles acrescenta que, no prazo de 30 dias a partir da vigência do decreto, será instaurado um processo administrativo “objetivando a comprovação das causas determinantes da intervenção”, bem como a apuração de responsabilidades.
Procurado pelo NeoFeed, o governo do Piauí enviou comunicado no qual destaca que a Globaltask quer seguir recebendo recursos públicos “sem prestar contas e sem construir a rede de fibra ótica pública”, limitando-se a terceirizar os serviços de acesso à internet.
“A intervenção, portanto, se demonstra como medida legal e necessária para resguardar o interesse público e garantir a adequada prestação dos serviços. O governo do estado assegura que os serviços oferecidos através da concessão continuarão funcionando normalmente”, ressalta a nota.
Além da falta de clareza sobre os motivos por trás da intervenção, na visão da Globaltask, exposta no prazo de 30 dias para que essas razões sejam apresentadas, a concessionária rebate o argumento de que deixou de repassar informações sobre os bens reversíveis relativos ao projeto.
Nesse ponto, nos termos do contrato, a empresa é a responsável pela construção, manutenção e gestão da rede de internet gratuita do Piauí Conectado. Essa infraestrutura, assim como todos os ativos incluídos na iniciativa, passará a ser de propriedade do estado ao fim do prazo da concessão.
“Nós enviamos diversas vezes a relação dos bens reversíveis e eles sempre pediam que entregássemos de uma outra forma”, alega Ribeiro. “No fim das contas, passamos todo o ano de 2023 trocando ofícios e correspondências e nunca chegávamos a um acordo do que eles queriam.”
Ele frisa que, com a intervenção, resultado dos ruídos crescentes nesse diálogo, a equipe que assumiu o projeto não tem as especificações técnicas requeridas. E que, como reflexo, a qualidade do serviço prestado caiu “assustadoramente”.
Segundo o empresário, em sua fase inicial, que priorizou a oferta do serviço e que foi concluída no fim de 2022, a concessão conectou os 224 municípios incluídos no projeto, por meio do uso da rede de terceiros.
“A partir de 2023, começamos a substituir esses parceiros e o plano é que 100% dessa estrutura seja própria até dezembro deste ano. Estamos seguindo rigorosamente o cronograma”, explica. “Mas, agora, não temos o que fazer. Os investimentos estão parados por conta da intervenção.”
Para financiar o que foi feito até aqui no projeto, a Globaltask recorreu a uma emissão de debêntures no valor de R$ 135 milhões. O restante dos recursos aportados foi feito com o próprio caixa da companhia.
À parte desses argumentos, na tese da Globaltask, a maior defesa são os indicadores contabilizados, até aqui, pela concessão. É o que mostram, por exemplo, os dados mais recentes do ranking Minha Conexão, que mede a velocidade de internet em todo o Brasil.
Segundo levantamento divulgado neste mês, o Piauí tem a internet mais rápida do País, com uma velocidade de 193,19 Mbps (megabits por segundo). Para efeito de comparação, São Paulo está na oitava posição, com um índice de 117,52 Mbps.
Há outros números nessa conta. Segundo a Globaltask, antes da concessão, o estado pagava, em média, R$ 1,8 mil por megabit. Hoje, esse custo médio está em R$ 92. Com o adicional da cobertura de 100% das cidades pela rede de fibra ótica e de que essa estrutura será herdada pelo governo local.
“É irônico. O Piauí passou do último para o primeiro lugar e, em cinco anos, o projeto foi atestado por um verificador independente e nunca houve sequer uma advertência”, diz Fernando Albino, advogado da Globaltask no caso. “Inclusive, o atual governador usou isso como trunfo em sua campanha.”
Para Guilherme Naves, sócio da consultoria Radar PPP, é natural que cada PPP, pela complexidade do modelo, tenha desafios contratuais. Mas ele destaca que o País não tem mais espaço para disputas como a que envolve o Piauí Conectado, que, mesmo já sendo uma exceção, extrapola esses limites.
“Não se pode dar ao luxo de decretar um instrumento absolutamente excepcional em um contrato que tem uma percepção de valor pelos usuários e que transformou a realidade do Piauí”, diz Naves. “Com que cara, com que roupa, o estado vai leiloar uma rodovia na B3?”
Ele ressalta que os possíveis impactos não estão restritos ao projeto ou a futuras concessões do governo do Piauí. Especialmente em um momento em que o governo federal vem criando instrumentos para viabilizar investimentos em infraestrutura e com o custo político por trás desses esforços.
“Com certeza, a análise de risco dos investidores vai considerar esse caso, que pode contaminar outros estados”, observa. “Então, o recado que se passa é muito ruim. Sobretudo do ponto de vista da competição pela atração do capital estrangeiro. Isso gera uma mácula muito grande.”
Ouvido pelo NeoFeed em condição de anonimato, um operador de concessões engrossa esse coro ao ressaltar que, mais do que um símbolo dos desafios inerentes a essas parcerias, as incertezas trazidas à tona na concessão podem ter efeitos colaterais muito mais amplos.
“Não é pelo fato de o Piauí responder por menos de 1% do PIB que o caso não tem impacto. Não podemos deixar que uma pequena gripe vire uma tuberculose”, diz a fonte. Ele afirma que não há problema num ente público retomar um contrato. Desde que ele pague as multas e cumpras as regras.
“Casos como esse do Piauí afastam os investimentos do País”, acrescenta. “Tudo o que o capital não quer é insegurança jurídica. Se isso está na mesa, há milhares de oportunidades mundo afora competindo e esperando por esses recursos.”
Um estudo realizado pelo Movimento Brasil Competitivo (MBC), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e a Fundação Getulio Vargas (FGV), ajuda a dar uma dimensão do impacto gerado pela insegurança jurídica no País.
Segundo projeções da pesquisa, que mede uma série de ineficiências que compõem o chamado Custo Brasil, os gastos das empresas com essa questão estão na faixa de R$ 170 bilhões e R$ 200 bilhões.
Já emblemático, o caso do Piauí Conectado tem como próximo trâmite mais provável a instalação de um Tribunal de Arbitragem na Câmara de Comércio-Brasil-Canadá (CCBC). Nessa esfera, está previsto um desfecho para a disputa. Mas, até sua instauração, ainda cabem recursos de ambas as partes.
A abertura para novos episódios está ligada a etapas anteriores desse processo, que ainda correm na justiça. Elas incluem, por exemplo, o processo impetrado pelo governo do Piauí em março de 2023, em busca da redução de 65% do valor mensal estipulado no contrato. O que passou a vigorar em maio.
Como resposta, em agosto de 2023, a Globaltask entrou com um requerimento do processo arbitral na CCBC. Em uma primeira fase dessa ação, em caráter liminar, a decisão de um árbitro de emergência determinou o pagamento dos valores devidos à empresa pelo governo entre maio e setembro.
Em paralelo, a concessionária tem outra ação movida contra o Banco do Brasil. Já que, nos termos do contrato, o banco era o agente fiduciário responsável por um fundo de garantia para eventuais casos de inadimplência. A Globaltask alega que, desde maio daquele ano, esses recursos não foram repassados.
Procurado pelo NeoFeed por meio de sua assessoria de imprensa, o Banco do Brasil observou que, na qualidade de agente de pagamento, “vem cumprindo rigorosamente, e de forma isenta, suas responsabilidades contratuais, em conformidade com as determinações do Poder judiciário”.
Enquanto as controvérsias e incertezas ainda dão o tom dessas batalhas, a Globaltask, por sua vez, já tem clara sua posição caso a saia derrotada nesse front.
“O peso dessa concessão é muito grande, pois ela inicia uma nova etapa na empresa e temos a perspectiva de replicar o projeto em outros estados”, diz Ribeiro. “E é uma quebra fragorosa de contrato. Se perdermos, não teremos mais nenhum apetite por projetos com o setor público.”
Fonte: Neofeed
Por: Moacir Drska